A vida, para nós, simples mortais, é feita de trocas. À exceção de grandes missionários terrenos, os quais podem ser contados a dedo, sempre esperamos algo em troca do que damos, ou damos algo em troca do que já recebemos. Assim, trocamos nossos serviços por dinheiro, dinheiro pelos serviços e produtos alheios, serviços por serviços, produtos por produtos. Trocamos olhares, abraços, apertos de mão, carícias. Trocamos informações, trocamos até mesmo graças e milagres por preces, velas, dízimos. Trocamos o nosso calar pelo silêncio alheio, o nosso esbravejar pelo respeito ou medo do outro.
Em outras palavras, tudo - e todos - tem um preço, mesmo não sendo este preço algo material. Pagamos, na maioria das vezes, sem o perceber. Mas por que, exatamente, o fazemos? Sentimento de gratidão, débito ou culpa? Até que ponto não podemos simplesmente dar, sem esperar nada em troca, e receber, sem sentir-se obrigado a retribuir? Que força estranha é esta que nos move? Vamos tentar descobrir.
Gratidão: quando damos algo para alguém, de coração aberto, nossa maior recompensa é o prazer de poder ter feito o que fizemos. Quem já experimentou isso sabe do que estou falando. Puxe na memória, você vai encontrar algum momento assim na sua vida. Quem dá desta forma, não está esperando retribuição alguma, nem mesmo a gratidão; se, ao contrário, recebe ingratidão e se ressente, então não estava de coração aberto quando ajudou o outro; esperava retribuição.
Agora, coloque-se, você, no lugar do que recebe a ajuda ou o favor; se você acha que tem que retribuir (pagar) seu benfeitor, é porque ele não o ajudou sem esperar paga, e deixou você perceber isso de alguma forma, ou porque você acha que não merecia a ajuda, e por isso será infinitamente grato. Assim é que muitas pessoas, mesmo quando “quites” com seus benfeitores, nunca acham que já pagaram o suficiente. Neste último caso, a necessidade real não é de retribuir, mas sim, de distribuir: dar de si mesmo para outros; logicamente, isso somente vai livrá-lo daquela incômoda eterna gratidão se for feito do fundo do coração, sem esperar nada em troca, como o fez seu benfeitor. A gratidão se torna incômoda quando nunca nos sentimos quites para com aquele que nos ajudou. Um exemplo pessoal: anos atrás precisei, pedi e recebi uma ajuda financeira do pai de uma amiga, para pagar a matrícula de minha faculdade. Atendido de pronto, busquei quitar meu débito – o do dinheiro – poucos meses depois, como me comprometi, e ele negou-se a receber (na verdade, para mim era “muito” dinheiro, mas para ele, não). Pronto: baixou o espírito da gratidão! Devo agora gratidão a ele! Poucos anos depois este homem precisou de um serviço profissional meu, e adivinhe o que fiz? Exatamente, retribuí a gentileza; aí o tal espírito virou um “fantasma” que, embora não me atormentasse, ficou lá me dizendo que eu ainda estava em débito com o pai da minha amiga. Anos depois, porém, compreendi que não se quita um favor descompromissado com outro favor, mesmo que também seja só de coração.
Nada que façamos pagará a gratidão que temos por alguém, da mesma forma que ninguém poderá quitar a gratidão que tenha para conosco. Eu me libertei do tal “fantasma”, mas não deixei de ser grato àqueles que me beneficiaram até hoje. E procuro multiplicar isso, fazendo favores a outras pessoas, descompromissadamente (aviso, entretanto, que estou bem longe de ser um daqueles missionários que citei no início deste texto!).
Débito: Diferentemente da gratidão, o débito é o dever propriamente dito. Ao recebermos algo por algum motivo, sentimo-nos na obrigação de devolver. A não ser, obviamente, que o credor não queira receber de volta, mas, mesmo assim, ainda haverá um débito a ser saldado. Neste caso, a transferência de credor finalizaria a sensação do débito: pagamos algo que devíamos a alguém, para outro alguém, e ficamos quites. O problema ocorre quando não o fazemos, ou quando cremos não ter pago este saldo devedor na sua totalidade. Neste caso, voltamos ao “não merecimento” daquele que recebe. Há pessoas que dizem “eu não mereço tanto” ou “tenho mais do que mereço”, tendo e dando a impressão de que são mais, ou menos merecedoras de dádivas que os outros indivíduos. Com isso, tanto podem se sentir, quanto podem fazer os outros sentirem-se em débito além daquele que é real.
Culpa: É o débito derivado de prejuízos de qualquer natureza causados a nós mesmos ou aos outros, geralmente produzido por nossas más escolhas. Este sentimento, do ponto de vista de quem o sente, pode ser bastante nocivo ao próprio indivíduo, enquanto não compreendido e considerando-se a situação e o momento em que a escolha infeliz foi feita. Quem sente culpa vive sempre o conflito do não merecimento, seja de si mesmo, seja dos outros. Dia desses, eu comentei com uma amiga sobre como eu não me sentiria bem em, podendo, comprar um carro que custa mais de dois milhões de Reais, sabendo que há tanta miséria ao meu redor. Hipotético, porém, sentimento de culpa, não por causar a miséria de ninguém, mas por não fazer nada para aplacá-la tendo recursos para isso. Melhor não ter tanto dinheiro? Absolutamente! Melhor usá-lo com sabedoria e compaixão, evitando arrependimentos, evitando culpas.
Ainda que a escolha equivocada já tenha sido feita e a culpa já esteja instalada, o importante é perceber que tão ou mais importante que o perdão alheio, é o perdão a si mesmo, desde que acompanhado de arrependimento sincero e compromisso de reparação, da forma possível, e de empenho na auto-avaliação e no autocontrole, daí em diante.
Como andam estes nossos sentimentos? Com quem e de que forma estamos realizando nossas trocas? Será que não estamos nos sentindo em débito permanente, na posição dos não merecedores, o que muitas vezes nos leva (inconscientemente) às retribuições pesarosas, a “pagar o preço”? Verifique se, a cada coisa boa que você faz ou que lhe acontece, sucede-se imediatamente uma ruim para “estragar a festa”; e, verifique, principalmente, a possibilidade de você já esperar este resultado; em caso positivo, a boa notícia é que é possível mudar isso, quando você quiser. Um pouco de caridade com você mesmo, sem desconsiderar os demais, pode tornar a vida bem mais leve!
É só um convite à reflexão, que eu também estou fazendo.